O ano de 2019 impôs adversidades para a força-tarefa. O momento é de cautela para os investigadores. Mas o recado das ruas é claro: não serão permitidos retrocessos no combate à corrupção.
A manhã do dia 9 de novembro de 2019, um sábado, foi semelhante a uma quarta-feira de cinzas nos arredores da Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Integrantes da vigília “Lula Livre” recolhiam materiais, empilhavam cadeiras e varriam as ruas. Um dia antes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora solto por decisão do juiz federal Danilo Pereira Jr. Após um ano e sete meses de cárcere, o petista saiu da sede da PF em clima de festa. Militantes chegaram a formar um corredor humano para recepcioná-lo.
Ao discursar, depois de ter sido recebido com alegria por uma multidão, Lula disparou em tom inflamado: “O lado podre da Justiça, o lado podre do Ministério Público, o lado podre da Polícia Federal e o lado podre da Receita Federal trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, criminalizar o PT, criminalizar o Lula.”
A Operação Lava Jato completou meia década em 2019. No entanto, o ano foi de pouca comemoração para os órgãos e instituições que compõem a força-tarefa. A liberdade do ícone petista ocorreu um dia após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido, por 6 votos a 5, que um condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado (o fim dos recursos). Isso alterou a jurisprudência que, desde 2016, tem permitido a prisão logo após a condenação em segunda instância.
No início do ano, a maior investigação sobre corrupção da História do Brasil já sofrera um grande revés: o STF decidiu determinar que cabe à Justiça Eleitoral julgar crimes comuns, quando relacionados a questões eleitorais. Com o julgamento, a corte impôs uma importante derrota à Lava Jato, que defendia que esses processos permanecessem tramitando na Justiça Comum.
Nesse contexto, a soltura de Lula deixa a operação numa complexa encruzilhada, em que importantes decisões precisam ser tomadas. E mais: liga o sinal de alerta para as autoridades brasileiras. A Lava Jato está mesmo enfraquecendo?
Ao projetar o futuro, tendo em vista o impasse envolvendo a prisão em segunda instância, o presidente da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), Fábio Sbardelotto, acredita que, de alguma forma, a força-tarefa sofrerá prejuízos no seu desenvolvimento. O procurador de Justiça pondera que ao se retornar para o modelo anterior, com a exigência de prisão apenas quando esgotados todos os recursos, e considerando o sistema recursal brasileiro, o trânsito em julgado será tardio – uma vez que infindáveis ações e recursos acabam por atrasar o cumprimento da pena.
“Trata-se de uma constatação objetiva: diante da nova exigência, e considerando o modelo processual, o trânsito em julgado pode ser conduzido por instrumentos jurídicos que acarretam afronta à necessária e mínima celeridade”, avalia Sbardelotto, que é professor de Direito Penal e Processo Penal da FMP.
Com um desenho singular, Brasília possui um traçado repleto de contornos urbanos. A Capital Federal foi projetada há mais de 40 anos com uma característica marcante: as asas da cidade de concreto, que provocam diferentes interpretações. Muitos consideram que o Plano Piloto tem o formato de avião, pássaro ou até mesmo de uma borboleta.
Na intersecção entre a Asa Sul e o Eixo Monumental, avenida situada no centro do Plano Piloto, encontra-se o Posto da Torre. O estabelecimento fica a cerca de quatro quilômetros do Congresso Nacional e inspirou o nome da maior investigação sobre corrupção conduzida até hoje no Brasil. A Operação Lava Jato, que completou cinco anos em 2019, teve como ponto de partida um posto de gasolina situado em uma área nobre de Brasília.
O Posto da Torre, conforme apontou as investigações coordenadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, era o centro de operações de réus da Lava Jato que integravam um grupo de doleiros. Eles faziam parte de esquemas de corrupção de políticos e agentes públicos. No local, que já foi chamado em um laudo da Polícia Federal de “caixa eletrônico da propina”, funcionavam uma lanchonete, uma lavanderia e uma casa de câmbio. De acordo com a PF, foram gerenciadas no posto contas que movimentaram pelo menos R$ 10,8 milhões entre 2007 e 2014.
A SOLTURA DE LULA DEIXA A OPERAÇÃO NUMA COMPLEXA ENCRUZILHADA, EM QUE IMPORTANTES DECISÕES PRECISAM SER TOMADAS.
A partir da identificação dos doleiros, os investigadores seguiram de maneira exata a expressão “follow the money” (“Siga o dinheiro”, em português), popularizada nos anos 1970 pelo filme Todos os Homens do Presidente. O longa narra a investigação do jornal norte-americano The Washington Post sobre o Watergate, escândalo político que levou o presidente Richard Nixon à renúncia. Em um esquema de corrupção, o dinheiro deixa rastros que muitas vezes levam até os altos escalões do poder, como indica a frase.
Ao seguir o dinheiro, a apuração abriu uma série de novos desdobramentos. As autoridades começaram a investigar esse grupo de doleiros ligado a Alberto Youssef, que movimentou bilhões de reais no Brasil e no exterior. Youssef tinha negócios com um ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, grandes empreiteiras e outros fornecedores da estatal.
Em função da complexidade das investigações, a força-tarefa apontou sua lupa para alguns núcleos: políticos, operadores, executivos e outros coadjuvantes. Deputados e senadores foram acusados de apoiar e indicar executivos da estatal em troca de dinheiro para campanhas eleitorais, garantindo a manutenção do esquema de fraudes nos contratos da empresa com as empreiteiras.
Após a identificação de movimentações financeiras ilícitas entre os partidos, Petrobras e empreiteiras, que eram intermediadas por operadores e lobistas, também foram descobertas empresas de fachada utilizadas na lavagem dos recursos públicos desviados. Executivos da Petrobras e das empreiteiras foram acusados de organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção. Eles são os supostos responsáveis pelas fraudes nos contratos da estatal e pelos desvios de verbas.
Além de Lula (PT), Aécio Neves (PSDB), Delcídio Amaral (ex-PT), Edison Lobão (MDB), Eduardo Cunha (MDB), Fernando Collor (PROS), Romero Jucá (MDB), Michel Temer (MDB) e José Sarney (MDB) são algumas das figuras políticas conhecidas de todos os brasileiros que foram investigadas na história da Lava Jato.
A decisão STF de derrubar as prisões em segunda instância sacudiu o país e retomou as discussões sobre o futuro da Lava Jato. E isso, claro, causou indignação na opinião pública. Além de libertar o ex-presidente Lula, encarcerado em Curitiba desde abril de 2018, a medida pode ser o salvo-conduto para cerca de 4,9 mil detentos em situação semelhante. O julgamento mobilizou atores políticos e anônimos da sociedade que lutam por mais segurança jurídica e paz no Brasil. Dezenas de protestos coloriram o país de verde e amarelo horas após a soltura de Lula. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Salvador foram algumas das capitais que registram atos.
Mas as ações não ficaram restritas às ruas. Entre as iniciativas, ganhou destaque na Capital Federal um coletivo de mulheres – entre juristas, cientistas políticas e empreendedoras – que fizeram uma romaria para pressionar parlamentares pela aprovação definitiva de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.
A missão teve o apoio do Grupo VOTO, representado pela diretora-executiva Karim Miskulin. Na avaliação da cientista política, a impunidade não pode abrir precedentes. Por isso, a votação do STF representa um perigo para o país. “Não importa o partido, mas sim o compromisso. Estamos otimistas com a reversão dessa decisão. O Congresso está sintonizado com os desejos da nação”, disse.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), afirmou que o assunto deve ser resolvido na Casa até o início de 2020. E as perspectivas são positivas: o líder do Congresso sinaliza que o resultado deve ser favorável para a derrubada da decisão proferida pelo Supremo. “Nos primeiros meses do ano que vem, nós teremos uma solução clara para o fim desse tema, que gera na sociedade uma visão muito forte de impunidade no Judiciário brasileiro”, criticou.
Nesse sentido, ainda em dezembro, foi criada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Prisão em Segunda Instância. Para os parlamentares que a integram, a condenação em segunda instância deve ser suficiente para determinar o cumprimento imediato da pena. O senador Alvaro Dias (Podemos-PR) foi eleito presidente da frente. Para vice-presidente, foi eleito o deputado Marcel van Hattem (NOVO-RS). Composta por 33 senadores e 179 deputados, a frente parlamentar deve traçar estratégias para a aprovação de propostas que permitam o cumprimento imediato da pena por condenados em segunda instância
A DERRUBADA DAS PRISÕES EM SEGUNDA INSTÂNCIA MOBILIZOU ATORES POLÍTICOS E ANÔNIMOS DA
SOCIEDADE QUE LUTAM POR MAIS SEGURANÇA JURÍDICA E PAZ NO BRASIL
Na avaliação da advogada Verônica Althaus, a decisão do STF gera insegurança na população brasileira, que assiste a “um movimento retrógrado e inverso ao que ocorreu em outros países nos quais deveríamos nos espelhar”. “A decisão foi tomada por bases políticas, e talvez econômicas, e não por validação de norma constitucional”, avaliou a sócia do escritório Scalzilli Althaus. Segundo ela, a decisão deve impactar rapidamente toda a estrutura prisional brasileira.
ESPECIALISTAS INDICAM QUE DECISÃO FOI TOMADA POR BASES POLÍTICAS, E NÃO POR VALIDAÇÃO DE NORMA CONSTITUCIONAL
Apartidário e independente, o coletivo se reuniu com diversos outros líderes políticos, como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM) e os deputados federais Daniel Coelho (Cidadania-PE) e Carlos Sampaio (PSDB-SP), além do senador Álvaro Dias. Na avaliação do deputado Marcel van Hattem, que também recebeu o grupo, a resposta do Congresso será condizente com o desejo da sociedade. “Os condenados devem voltar para onde nunca deveriam ter saído: a cadeia”, respondeu.
Em audiência com o ministro da Justiça, Sergio Moro, as participantes também entregaram um manifesto pela aprovação da PEC e pediram que os órgãos competentes levem a Lava Jato até o fim, com seriedade e sem perdão.
Essa é a primeira ação de um grupo de lideranças femininas que tem o intuito de discutir e propor ações que ajudem o Brasil a superar a crise e voltar aos trilhos. Entre as ativistas estão Gabriela Manssur, promotora de São Paulo; Sandra Comodaro, reconhecida advogada curitibana; Comandante Nádia, vereadora de Porto Alegre; Rosa Richter e Iza Mansur, representantes da sociedade civil; além de Fernanda Barth, cientista política do Rio Grande do Sul.
As diferenças entre tempo cronológico e tempo histórico são fundamentais para a correta compreensão da memória política sobre os principais fatos das últimas décadas no Brasil. Em perspectiva, é inegável a relevância da Lava Jato no cenário político-econômico do país. O presidente da FMP, Fábio Sbardelotto, analisa que, em um período curto, a Lava Jato já trouxe resultados expressivos para o ambiente jurídico.
“Considerando o volume de fatos e de envolvidos, a complexidade das investigações e dos processos, pode-se afirmar que houve uma resposta célere. Se houvesse morosidade, certamente boa parte da prova teria se esvaído, grande parte das apurações teria sido prejudicada, e o ambiente social e até jurídico de consciência em torno do necessário combate à corrupção não teria se formado”, afirma o professor.
Sbardelotto ainda destaca que a operação produziu uma nova cultura de intolerância em relação à corrupção no Brasil. Para ele, o legado é claro no sentido de que o país já não tolerava mais tamanho descaso para com a malversação de recursos públicos. “As ações desenvolvidas foram saudadas de Norte a Sul, dando a impressão de um novo momento no que concerne ao enfrentamento da criminalidade graduada”, pontua.
O tema do combate à corrupção pautou o processo eleitoral de 2018 e deve seguir na agenda política brasileira. A manutenção do ambiente de intolerância para com o mau uso de dinheiro público se faz necessária em um futuro breve. Quantas fases ainda teremos da Lava Jato? Difícil apontar. Mas o Brasil que surge após a operação é um país mais maduro e uma sociedade mais atenta aos males causados pela corrupção.
Decisão do Supremo Tribunal Federal está em desacordo com a legislação usual em outros países. Confira:
Nenhum tipo de recurso aos tribunais superiores sobre decisões de primeiro grau permite a liberdade provisória. Ou seja, enquanto recorre, o réu aguarda preso.
A execução da pena é imediata, após a primeira sentença. Não é preciso aguardar o trânsito em julgado. Há exceções para grávidas ou mães com bebês.
A pena de prisão é automaticamente executada após a sentença de primeira instância. A fiança é uma exceção possível em alguns casos e o réu deve preencher requisitos rígidos para conseguir aguardar o julgamento do recurso em liberdade.
A prisão ocorre após a sentença de primeiro grau. É permitida a suspensão da pena ou que o preso aguarde o julgamento em liberdade, mediante o pagamento de fiança, em casos específicos.
Os réus condenados em primeiro grau aguardam em liberdade, enquanto não se esgotarem os recursos.
Há mais de 20 projetos tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado que tentam de alguma forma anular os efeitos da recente decisão do STF e restabelecer a prisão em segunda instância. Uma frente parlamentar foi criada para discutir o tema. Confira algumas das possibilidades:
Três PECs tramitam em conjunto na Câmara para tentar mudar a redação do inciso 55 do artigo 5º da Constituição. É ali que está defendido o princípio da presunção da inocência. O trecho diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A proposta do ex-deputado e atual ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni (DEM-RS) prevê substituir esse trecho da Constituição para “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Outra PEC indica que, em vez de alterar o artigo sobre presunção de inocência, seja mais adequado mudar o funcionamento dos recursos. De acordo com a proposta, as ações penais se encerrariam já na segunda instância.
A possibilidade de reverter a pena no STJ e no STF continuaria existindo, mas o condenado precisaria entrar com uma nova ação – independente da primeira – nos órgãos superiores
Uma terceira via é a alteração do Código de Processo Penal, que estabelece as regras para prisão na lei.
Os projetos que tramitam na Câmara e no Senado miram principalmente o artigo 283, que estabelece que o réu só pode ser preso depois que sua sentença transita em julgado.